De um crescimento econômico histórico a desafios estruturais sem precedentes.
Após o período de lockdown ocasionado pela COVID-19 e uma reabertura da economia muito esperada, porém decepcionante, o modelo econômico da China passa por uma mudança expressiva. O governo está tentando fazer a transição de um crescimento impulsionado pelo setor imobiliário e da construção, focado no curto prazo, para um crescimento de longo prazo impulsionado pela inovação em ciência e tecnologia, a reforma no ensino superior e estabilidade no consumo nacional, além de investimentos em infraestrutura. Naturalmente, esses desafios estruturais estão causando um efeito inédito no crescimento e nos mercados. Os principais desafios da China incluem os preços em queda no setor imobiliário, as preocupações com deflação, a falta de transparência e estímulo do governo, e uma frágil confiança por parte dos investidores.
Desde a crise financeira global, a construção de imóveis emergiu como o principal mecanismo do ciclo econômico – representando, no seu auge, quase 30% da atividade econômica. Além de se tornar um importante impulsionador do crescimento, o setor também trouxe consigo o ônus da dívida dos incorporadores imobiliários, preços semelhantes aos de uma bolha econômica e um excesso substancial de oferta de imóveis, que agora estão se desfazendo à medida que o governo deslocou seu foco do crescimento de curto prazo para a sustentabilidade de longo prazo.
Tecnicamente, os incorporadores imobiliários entraram em inadimplência em cerca de 70% da dívida em dólares americanos, enquanto as vendas de imóveis e o início de novos projetos estão entrando em colapso, e os preços estão começando a declinar. A partir deste ponto, ocorreu um efeito cascata: a fraca demanda oriunda do setor imobiliário colocou pressão sobre os preços, resultando em três trimestres consecutivos de deflação completa.
Em termos de política, a resposta do governo foi motivada pela decisão de se afastar do antigo modelo de crescimento (imobiliário e alta alavancagem), que resultou em um esforço para diminuir a ênfase no crescimento do PIB de curto prazo e uma relutância em recorrer às ferramentas monetárias e fiscais tradicionais. Embora existam várias restrições, como uma grande diferença nas taxas de juros em relação aos EUA e o risco cambial, surgem algumas preocupações referentes ao governo estar agindo de forma insuficiente e por um período prolongado. Além disso, há o receio de que as novas indústrias de alta tecnologia não se materializem ou sejam muito pequenas para impulsionar o crescimento geral, o que agrava ainda mais a perda de confiança dos investidores.
Em termos de mercados internacionais, a falta de transparência governamental e de apoio ao estímulo, juntamente com a frágil confiança por parte dos investidores, também estão afetando os investimentos estrangeiros na China. Embora seja difícil identificar um único fator, a tendência dos investimentos estrangeiros (tanto diretos quanto centrados em uma carteira) claramente se voltou contra a China e, agora, ambos estão retrocedendo. É desafiador fazer extrapolações com base em apenas um trimestre, mas essa provavelmente será uma tendência que veremos acontecer.
Com isso em mente, pretendíamos focar nas possíveis consequências do impacto da China na América Latina, que é uma das principais parceiras comerciais da China. Até agora, vemos duas principais vertentes:
1. O que significa a desaceleração econômica da China para o Brasil, Chile e Peru?
Uma desaceleração econômica costuma resultar em uma redução das exportações de minério de ferro, cobre e outras commodities. No entanto, a demanda da China não diminuiu de forma alguma. Na verdade, a política da China tem focado parcial no estímulo à demanda – especificamente, com medidas que visam estimular o consumo doméstico e a demanda agregada ampla. Até agora, a maioria dos estímulos tem sido direcionada a estimular a demanda a partir do lado da oferta, com foco no aumento da manufatura. Embora tenha feito pouco para estimular uma demanda mais ampla ou aliviar a deflação, esse aumento do foco no lado da oferta levou a China a buscar melhorar sua própria economia por meio da rápida expansão da capacidade. Como resultado, esse aumento considerável tem sido alimentado por um nível cada vez maior de importações para gerar capacidade, e cada vez mais provenientes da América Latina. A partir disso, países com uma infraestrutura decente, capacidade de fabricação e recursos naturais poderiam obter enormes benefícios, como o Brasil, Chile e Peru. O Brasil, particularmente, tem aumentado de forma progressiva sua participação nas importações totais da China ao longo das últimas duas décadas, demonstrando como a dinâmica poderia continuar impulsionando os países da América Latina no futuro.
A China tem aumentado continuamente as importações do Brasil
Participação do Brasil no total das importações chinesas
Curiosamente, as exportações chinesas e sua participação no mercado global têm aumentado, sobretudo, para a América Latina, África e mercados asiáticos, compensando a diminuição do comércio com muitos mercados desenvolvidos. Outro ponto interessante é o volume de exportações ter aumentado mesmo quando o valor dos produtos diminuiu significativamente. Essa discrepância entre a capacidade de fabricação e a demanda da China está reduzindo os preços de exportação da China e contribuindo para parte da desinflação observada mundialmente. Embora a deflação seja um problema para os formuladores de políticas nacionais, exportar deflação para outros países sustenta a narrativa de uma “aterrissagem suave” e pode ajudar os formuladores de políticas que visam reduzir as taxas de níveis elevados. Com isso em mente, o superavit comercial da China em bens manufaturados agora excede 2% do PIB global, um dos maiores já vistos na história. Se a China continuar a atingir as metas de crescimento com base na expansão da manufatura avançada, enquanto também se concentra na autossuficiência e na redução das importações de componentes essencais, poderemos presenciar um novo ciclo de fricções comerciais.
2. A China tem visto saídas significativas de fluxos da carteira no último ano. Será que a América Latina poderia se beneficiar disso?
Os investidores também têm redirecionado os fluxos para outras regiões dentro dos mercados emergentes, o que oferece oportunidades para alguns e desencoraja outros. A recente guerra entre a Rússia e a Ucrânia, junto com as dinâmicas tensas entre a China e os Estados Unidos, ajudaram a posicionar favoravelmente outros mercados emergentes para se beneficiar. Embora a Índia seja uma grande beneficiária dessa tendência, atualmente, ela está sendo negociada com um prêmio significativo em relação à sua história: cerca de 23x em comparação com sua média de 10 anos de quase 21x. O mesmo não acontece para outros países da América Latina, com o Brasil, o Chile, o México e a Colômbia sendo negociados bem abaixo de suas médias de 10 anos, e podem estar preparados para se beneficiar à medida que os investidores realocam seus investimentos em mercados emergentes devido à falta de catalisadores de curto prazo na China.
Em comparação com o histórico recente, os preços na América Latina estão baixos
Relação de índices P/L projetados para 1 ano à frente
Englobando a maioria dos mercados mais econômicos do mundo, as exportações diversificadas da América Latina, a ampla variedade de recursos naturais e o enorme potencial de produtividade consolidam sua sólida posição para se beneficiar das saída de capital da China. Além disso, acreditamos que o cenário envolve mais do que elementos externos, como o aumento do consumo doméstico e a tendência de nearshoring no Brasil e no México, particularmente.
Mesmo com a recuperação dos mercados, continuamos a adotar uma visão neutra sobre as ações chinesas até que mais suporte político seja entregue e sinais de uma reflação genuína surjam. Quanto ao crescimento, continuamos a adotar uma visão ligeiramente abaixo do consenso, esperando que o crescimento total do PIB esteja na faixa de 4,0 a 4,5% (em comparação com o consenso de 4,6%). Dito isso, do ponto de vista da carteira, há possibilidades de uma alocação para a China, especialmente pelos benefícios de diversificação. No entanto, é importante ter em mente que a China representa apenas 2-3% de um benchmark de ações globalmente diversificado. Nesse sentido, os países latino-americanos têm potencial para se beneficiar das dinâmicas de fluxo provenientes da China, bem como dos níveis de valuation substancialmente descontados, o que torna os níveis de entrada atuais bastante propícios para retornos futuros.