O conflito prejudicou o comércio internacional e os fluxos de capital, interrompeu as cadeias de suprimentos e aumentou a volatilidade financeira.
A ação militar da Rússia na Ucrânia abalou a própria essência da economia global. O conflito sobrecarregou o comércio internacional e os fluxos de capitais interrompeu as cadeias de suprimentos e ampliou a volatilidade dos mercados financeiros em todo o mundo. Apesar da exposição limitada da América Latina e de suas ligações diretas menores com a Rússia e a Ucrânia, a guerra afetou a economia da região por meio de vários canais, aumentando a incerteza sobre seu futuro próximo. Neste artigo, avaliamos as principais implicações macroeconômicas para a América Latina da guerra entre Rússia e Ucrânia.
Dependência de commodities: verdade ou mito?
Há muito tempo a América Latina tem a reputação de ser dependente de commodities, e tem se falado bastante sobre a probabilidade da região se beneficiar da recente alta nos preços das commodities, que subiram cerca de 40% nos últimos 12 meses e mais de 10% após o ataque russo à Ucrânia em 24 de fevereiro. Estas fortes altas, deveriam beneficiar qualquer região que não somente produz, mas, e talvez ainda mais importante, também exporta grandes quantidades de commodities para o resto do mundo. Esta deveria ser uma ótima notícia para a América Latina, que muitos consideram a região que mais depende de commodities no mundo. Mas a América Latina é realmente tão dependente de commodities quanto se acredita? A dependência de commodities é amplamente definida como a exportação de commodities que responde por mais de 60% das exportações totais de uma região (ou de um país); se tomarmos como base esta definição, uma rápida análise dos números confirma que de fato a América Latina como um todo é bastante dependente de commodities. Os números das vendas externas de 2021 mostram que, em média, 72% do total das exportações dos seis maiores países latino-americanos — Brasil, México, Argentina, Colômbia, Chile e Peru — estão relacionados a commodities, em comparação com 62% na África, 51% no Oriente Médio, 37% na Europa Emergente e 25% na Ásia Emergente. Isso significa, então, que a disparada no preço das commodities que começou no ano passado e foi ainda mais exacerbada pela guerra na Ucrânia este ano é uma bênção para a América Latina? Sim e não, a depender dos dados analisados.
Ganhos divergentes nos termos de troca
Como Rússia e Ucrânia têm um papel crucial na produção e exportação das principais commodities — grãos, óleos vegetais, fertilizantes, petróleo bruto e gás natural — a guerra entre os dois países fez os preços internacionais de alimentos e energia dispararem, sendo que já estavam altos. Portanto, caso se sustente, este aumento nos preços das commodities provavelmente terá um forte impacto nas contas externas de toda a América Latina. Mas o tipo de impacto, positivo ou negativo, provavelmente variará muito de um país para outro. Para começar, nem todos os países da América Latina são exportadores líquidos de commodities. Se por um lado a forte dependência da América do Sul das exportações de commodities permitirá que a região melhore seus termos de troca — medida de preços para as exportações de um país ou região em relação às suas importações — ampliando suas receitas de exportação e gerando uma entrada inesperada de moeda forte, os importadores líquidos de commodities, como México e América Central, provavelmente sofrerão com a alta nos preços das commodities. Mais especificamente, a recente alta no preço do petróleo deve reforçar as contas externas de exportadores líquidos de energia como Colômbia, Brasil, Venezuela e Equador, mas os preços mais altos de energia podem corroer as contas externas de México, Chile e Argentina, que são importadores líquidos de energia. Enquanto isso, os altos preços da soja causariam uma entrada inesperada de dólares no Brasil, maior exportador de soja do mundo, e na Argentina, terceiro maior exportador (os Estados Unidos ocupam o segundo lugar). O mais importante é que os preços mais altos das commodities provavelmente não beneficiarão da mesma forma as contas externas de todos os países latino-americanos; em última análise, este benefício dependerá de os países serem exportadores ou importadores líquidos de commodities que exportam, com a maior alta registrada por alimentos e energia, e os metais, tanto industriais como preciosos, que são produzidos por países como Chile (cobre) e Peru (cobre, ouro), tendo recentemente perdido parte de sua atratividade.
O crescimento será misto
A América Latina não sentirá o impacto da guerra na Ucrânia apenas em suas contas externas. Por mais que a disparada nos preços das commodities devido à guerra na Ucrânia favoreça as contas externas de alguns dos principais países da América Latina, o conflito também deve impactar a atividade econômica na região, mas em diferentes níveis. Se por um lado a entrada inesperada de moedas fortes impulsiona o crescimento econômico dos países exportadores líquidos de commodities, por outro lado a disparada nos preços das commodities provavelmente restringirá o crescimento dos países importadores líquidos de commodities. A alta nos preços das commodities deve favorecer o crescimento econômico no Brasil, na Colômbia e na Argentina — países que são grandes exportadores de alimentos e energia e que registraram os picos mais acentuados nos preços das commodities — mais do que no Chile e no Peru, onde a disparada nos preços de combustíveis e de produtos agrícolas provavelmente fará a inflação e os custos de importação subirem, neutralizando os ganhos com os preços dos metais, que estes países exportam em abundância. Já no México, onde os produtos manufaturados respondem por mais de 80% do total das exportações, a disparada nos preços de alimentos e energia forçará as autoridades monetárias a aumentar ainda mais as taxas de juros para conter a inflação, o que, por sua vez, atrapalhará o crescimento econômico. Em suma, mesmo que os preços internacionais das commodities estejam elevados devido à guerra na Ucrânia e sustentem o crescimento agregado na América Latina no curto prazo, os benefícios do aumento da atividade econômica provavelmente serão distribuídos de forma desigual, com os exportadores de alimentos e energia se beneficiando mais, e os importadores de energia, menos.
A inflação mostra as garras
Após muitos anos pairando próximo das metas oficiais, a inflação nas maiores economias da América Latina atingiu os níveis mais altos dos últimos 15 anos. A princípio, a combinação entre recuperação da demanda privada, primeiro por bens e depois por serviços, e inércia na política monetária elevou os preços ao consumidor em 2021; no entanto, a partir do dia 24 de fevereiro deste ano, a eclosão da guerra na Ucrânia e, como resultado, o novo aumento nos preços das commodities e interrupções na cadeia de suprimentos desencadearam outro choque inflacionário na região. O FMI estimou recentemente que um choque combinado de 10 pontos percentuais nos preços do petróleo e dos alimentos aumentaria a inflação nas maiores economias da América Latina em 1,1%. Com um choque inflacionário após o outro — primeiro o impacto da pandemia e depois o impacto da guerra entre Rússia e Ucrânia — a erosão da renda real devido à alta nos preços de alimentos e energia inevitavelmente ampliará as pressões econômicas já enfrentadas pela América Latina. Após a região registrar inflação de 8,4% em 2021, a princípio esperava-se que houvesse uma moderação para 4,5% em 2022, mas os efeitos adversos da guerra na Ucrânia sobre os preços ao consumidor nos forçaram a revisar nossa projeção para a inflação da região para 8,1% este ano.
Resumindo
Dado o status da América Latina de exportadora líquida de commodities, seria tentador concluir que uma guerra que elevou os preços das commodities, que já estavam altos, traria consequências positivas para a região. Afinal, a guerra entre a Rússia e a Ucrânia está ocorrendo a milhares de quilômetros de distância da América Latina, e a região até agora não teve envolvimento direto no conflito, mas somente ligações menores com as partes diretamente implicadas. No entanto, a realidade é que o que acontece em um mundo altamente globalizado acaba afetando até os cantos mais remotos do mundo. Evidências mostram que a guerra está de fato impactando a economia da América Latina de várias maneiras, mas o impacto é bastante desigual devido à natureza diversa da região. Enquanto os exportadores líquidos de commodities em geral podem esperar um ganho em moedas fortes causado pela alta nos preços das commodities, o oposto acontece com os importadores líquidos de commodities (principalmente combustíveis). Ao mesmo tempo, ganhos em termos de troca podem elevar o crescimento econômico de exportadores de alimentos e/ou combustíveis, mas tais ganhos podem ser mais neutros para exportadores de metais e até mesmo negativos para importadores líquidos de commodities. Por fim, um impacto negativo da guerra na Ucrânia para quase todos os países da América Latina é a inflação mais alta, que por sua vez está afetando a renda real, em particular nos segmentos mais vulneráveis da população. Portanto, a mensagem aqui é bastante clara; em alguns aspectos, uma guerra distante pode ter algumas consequências positivas para alguns países, mas negativas para outros, o que dificulta a generalização. e a conclusão de que o conflito entre a Rússia e a Ucrânia seja bom ou ruim para a América Latina do ponto de vista econômico. Não obstante, é claro, há o trágico impacto humanitário, que infelizmente é uma consequência inevitável de qualquer guerra.